domingo, 4 de novembro de 2007

Testemunho de um doente terminal

Ao encontrar a primeira enfermeira que viu pelos corredores, ela logo perguntou:

"Bom dia, a senhora poderia indicar-me o quarto de algum paciente que esteja internado por motivos decorrentes do consumo de cigarros?" A frase bem articulada, ensaiada tantas vezes antes, escondia o nervosismo da jovem repórter.

"E por que isso?", retrucou a senhora, com uma mescla de desconfiança e impaciência. Dirigia-se, naquele exato momento, ao andar superior do hospital, atendendo a um chamado de emergência.

"Trabalho para o Ministério da Saúde e preciso de um testemunho de algum doente, cuja enfermidade tenha sido provocada pelo consumo de cigarros, câncer seria ideal, para integrar a campanha antitabagista do Governo Federal."

Julgando-se plenamente segura de que, por mais campanhas como aquela que se fizessem, o número de pacientes como aqueles, que ainda teria de tratar durante os cinco anos que faltavam para aposentar-se, não diminuiria, a velha mulher respondeu:

"Este andar está cheio de pacientes com câncer. Tente descobrir se algum deles fumava...ou ainda fuma", disse já quase alcançando as escadas.

Abandonada pela velha enfermeira, encontrou-se completamente sozinha no corredor branco do hospital. Olhou ao seu redor. Nenhum sinal de médicos, ou visitantes. Pensou, de si para si, que todos sabiam o destino daqueles que habitavam aqueles quartos. Talvez, por isso, as ausências.

Finalmente, começou a andar em busca de seu entrevistado. Muitas portas fechadas. Algumas, abertas, mostravam o sono triste e pesado de seus hóspedes. Desapontou-se um pouco. Quando seu chefe, Roberto, a incumbira de tal reportagem, disse-lhe da importância da mesma no corpo da campanha. Por isso, ela julgava ser uma chance para impressioná-lo. Cumpriria em breve cinco anos naquele emprego e ainda não havia obtido nenhum aumento salarial. Roberto dizia-lhe que desempenhava um bom trabalho, sempre produzindo boas reportagens. Mas esse era justamente o principal problema: Faltava-lhe uma grande reportagem, algo que tivesse a sua marca, que a distinguisse dos demais. Sem isso, sabia que continuaria com o salário de R$ 1.200 reais mensais mais benefícios - vale-alimentação de R$ 11,50 por dia. Decidiu, porém, que o melhor era parar de pensar naquilo, o que só a atrapalharia naquele momento.

De repente, acercou-se de um quarto de cuja porta emanava uma luminosidade fora do comum em relação ao que havia visto até então. Deteve o passo para, de soslaio, poder espiar seu interior. A janela estava completamente escancarada e, por ela, entrava a luz. A tevê, ligada, não emitia qualquer som. Nada de pessoal nas estantes e prateleiras. Apenas aparatos médicos. Na cama, um homem de aproximadamente cinqüenta anos simplesmente olhava para algum ponto qualquer da parede. Tubos penetravam por sua garganta através de um profundo corte. Sabia que aquilo praticamente confirmava o câncer de garganta, cuja principal causa de incidência é justamente o tabaco - havia estudado um pouco sobre o tema em sua casa, no final de semana. Uma ponta de excitação percorreu o seu corpo, livrando-a da frustração anterior. Pensou ter encontrado o que buscava.

Por aproximadamente três minutos ficou parada junto à entrada do dormitório. Perguntava-se qual seria a melhor forma de entrar e despertar a atenção daquele homem. Naquela situação, qualquer erro poderia comprometer tudo. O entrevistado poderia fechar-se completamente em si. "Entro timidamente e sussurro algo, por favor senhor, poderíamos conversar?, ou, de uma maneira mais brusca, praticamente invado o quarto despertando a atenção do homem, de maneira tal que ele se sentisse compelido a iniciar a conversa?”. Após alguns instantes refletindo, decidiu-se. Trocou os lentos e delicados passos, que a levaram até lá, por um pisar duro e barulhento, que praticamente a levou à cabeceira da cama. Nada. O homem continuava olhando para a parede. Parecia que nada o faria sair daquele estado quase vegetativo. Não enxergava os olhos dele. Sentiu-se intimidada. Não sabia bem o que fazer e, por isso, esperou mais alguns minutos calada, na esperança de que ele a notasse e, mesmo que fosse para expulsá-la dali, dirigisse-lhe alguma palavra, porque assim, teria chance de estabelecer algum contato. Mas os minutos avançavam e ela não notava nenhuma mudança. Nem mesmo um leve contrair de músculos. Dominada pelo silêncio daquele homem, precipitou-se a fazer a primeira pergunta.

"Bom dia, o senhor está bem?"

Ainda sem mover o olhar do ponto que mirava desde sempre, ele respondeu com uma voz pesada que, mesmo assim, quase não se fez ouvir:

"Eu pareço bem para você?"

Desnorteada, toda a seqüência de perguntas imaginadas anteriormente desmoronou em sua mente. Tentou recompor-se. "Um bom repórter precisa saber lidar com o inesperado, com uma resposta totalmente imprevisível", pensou. Resolveu que, com aquele homem, talvez seja melhor ir direito ao ponto, sem rodeios:

"O senhor tem câncer?

"Sim"

"E fumava?

"Sete maços por dia".

Talvez seja essa a melhor maneira mesmo, julga. Animou-se com o ligeiro avanço. Continuou:

"Sabe que os cigarros podem ter sido a principal causa de sua doença?”

Silêncio. Procurou manter a calma. Havia progredido, isso era incontestável. Retomou:

"Lembra-se se fumava nos melhores momentos de sua vida? Quero dizer, fumava quando saía com os amigos, quando ia a festas?"

A repórter julgava ser essa a principal pergunta que elaborara e julgou ser o momento de introduzi-la na conversa. Pensava em depois, após a afirmativa resposta que espera, perguntar-lhe se tais momentos teriam sido menos felizes sem a presença do cigarro. Esperava, ainda, que ele responderia que não, que não teriam sido menos felizes. Com isso, confiava que conseguiria levá-lo a manifestar o arrependimento e, final glorioso, aconselhar os jovens a abandonar o vício. A possibilidade de ver concretizada toda essa seqüência de perguntas e respostas a excitava. De repente, é interrompida em seus devaneios:

"Você não ouviu o que eu disse? Eu fumava sete maços por dia. Faça as contas. Eu fumava o tempo todo".

Sente-se reduzida a pó. O momentâneo êxito que conseguira desvanecia-se. Por mais uma vez, não sabia o que perguntar. Já imaginava que dificilmente conseguiria uma brilhante reportagem e o conseqüente reconhecimento de seu chefe. Sentia-se humilhada. Destroçada por um homem que não se movia de sua cama, não se dignava a olhá-la.

Previa seu fracasso. Ou melhor, já o sentia eminente. Perguntou, já sem praticamente mais nada esperar de animador:

"O senhor se arrepende?".

"E adianta?", ouviu quase que imediatamente após concluir sua frase.

Agora é a sua vez de fixar os olhos em um ponto distante. Já não sabia mais o que fazer ali. Manter seu emprego, agora, já seria muito, diz de si para si. Já se preparava para ir embora. Por um momento, pensou em simplesmente virar as costas e sair andando, já que o homem parecia definitivamente decidido a não olhá-la e ela tampouco se atrevera a interpor-se entre o homem e o seu ponto. Resolveu, mesmo assim, ficar e fazer a última pergunta, para que, depois, não lhe surgissem tolas esperanças de que poderia ter salvado a entrevista, de que, de alguma maneira, poderia ter ocorrido alguma reviravolta que lhe fosse benéfica. Despejou:

"O senhor aconselharia aos jovens que abandonassem os cigarros?"

"Eu lhes diria apenas que a comida de hospital não é tão ruim como costumam dizer nos filmes".

2 comentários:

Bruno Cave disse...

Você fuma, Diogo?

bernardo.vianna disse...

É isso q dá entrevistar alguém esperando uma determinada resposta q vai se encaixar perfeitamente no lindo texto q vc imaginou. E olha q nem é algo exclusivo de repórteres iniciantes. Até me atrevo a dizer q é um recurso bastante utilizado, algo do tipo "preciso de aspas dizendo isso". O mais interessante é q muitas vezes os mesmos defensores da tal imparcialidade e objetividade são aqueles q entrevistam pessoas em busca de uma frase já pensada pelo próprio entrevistador...