domingo, 4 de novembro de 2007

O Velório

Muitos já escreveram sobre o tema, admito. Não é por menos. Um velório de alguma pessoa, ainda mais quando amada, bota o sujeito comovido como o diabo, como diria o gauche. Esses dias mesmo, lia algo do Nelson Rodrigues. Não me lembro bem, mas, em dado momento, ele dizia algo sobre uma velhinha que lhe pedira que não escrevesse mais sobre o tema. As pessoas, quando se trata da última despedida de alguém, deveriam apenas guardar silêncio. Ele não lhe respondeu isso, mas acho que o Nelson deve ter pensado que guardar silêncio é o que as pessoas menos fazem em um velório. Ele tem razão. Eu acabo de voltar do de minha avó. Dona Lourdes. Boa pessoa. Gostava muito dela. Passei boa parte de minha infância saboreando seus pastéis de carne e, como diria meu tio, pedindo que ela me fizesse suco de laranja coado. Espero nunca esquecer-me do timbre de sua voz. Era decidido como sua dona.

Já tinha ido algumas vezes ao velório de minha cidade, mas me lembrava parcamente. Pra falar a verdade, só do de meu avô. Agora só me resta uma avó, mãe de meu pai. Em todas as outras vezes, cumpri tabela. Enfim, conhecia o lugar, sabia para onde dirigir-me. Lá chegando, avistei o irmão de minha mãe, de longe. Aproximei-me para cumprimentá-lo. Ele estava cercado por tios e tias e primos e primas. Distantes, todos. Recebi os pêsames de praxe e ouvi várias vezes o quanto estava grande. Estavam perto de uma multidão que cercava um dos caixões ali postos. Cada um dentro de um espaço retangular delimitado por algumas cadeiras que cercavam os ataúdes definitivos. Não achei impossível, mas duvidei que fosse o de minha avó, até porque não reconhecia nenhum daqueles rostos que derramavam tantas lágrimas. Percebi que, de fato, não se tratava dela quando ouvi alguma tia minha dizendo que era o corpo de um rapaz de 24 anos que fora assassinado na noite anterior, em um assalto. Era dele aquele caixão que eu avistara primeiramente. Indaguei onde estava o de minha avó e me indicaram a direção oposta. O jovem defunto fazia mais sucesso mesmo entre os “convidados” de Dona Lourdes.

Fui velá-la. Estava irreconhecível após a semana que passara na UTI. Percebia que havia sofrido muito. Seu rosto também dava clara mostra de que havia “ido embora” muito a contragosto. Queria viver. Quando eu a visitara, ainda no quarto do hospital, falava-me sobre coisinhas, o que demonstrava confiança em seguir por aqui. Irritava-se, como sempre, com o meu jeito despreocupado de vestir-me. Pediu até para eu cortar o cabelo. Pensava no amanhã, no depois, e no depois do depois de amanhã. Imaginava seguir cuidando de mim, de seus netos.

Mas havia mesmo ido embora e vendo-a ali, finalmente me dei conta. Recebera a notícia na madrugada daquele dia. Minha mãe me despertara às cinco da manhã, em minha casa em São Paulo. Tomei um banho e depois o ônibus. No caminho, senti-me culpado pela tranqüilidade com a qual comi um pão com manteiga e tomei café. Talvez ainda não acreditasse no sucedido. Não sei. Não é que a gente não acredite, mas antes de ver o corpo é um sentimento estranho o que domina a gente. Talvez por isso. Mas diante do caixão a coisa mudou de tom. Chorei todas as lágrimas que até aquele momento, não sem sentir certa raiva de mim mesmo, duvidara que derramasse. Mas derramei.

Após alguns minutos, comecei a reparar melhor nas pessoas que estavam por ali. Minha avó tinha muitos irmãos e por isso havia muitos tios, tias, primos e primas. Eu não via muito deles, desde o último aniversário de minha avó. Nesse instante, pensei que nunca mais os veria. O elo comum, que nos unia “aniversariamente”, como diria Pessoa, já não mais existia.

Após tempo recebendo mais outros daqueles mesmos cumprimentos, uma má impressão começou a formar-se em meu interior. “Ela está melhor agora, não se preocupe. Está ao lado de Deus”, ou “Foi melhor para ela. Estava sofrendo. Agora estará com Deus”, era o que eu ouvia, entre outras variações que, contudo, sempre contavam com a presença de Deus. Sentia em tais comentários um “lavar de mãos”, já que agora ela ia para “as mãos” de Deus. Uma negligência prematura da memória de minha avó. Discordava de todos eles. Deus? Eu pensava comigo mesmo que queria ela é pra mim, pra minha saudade e minha lembrança.

Aproximava-se a hora do cortejo ao cemitério. Percebi algumas velhinhas em rebuliço. Havia de se esperar pelo Padre que faria a oração final. Quando o sacerdote chegou, cabelos e barbas brancas, traje branco, melhor impossível, todos se acercaram ao caixão. Eu já estava lá. Olhava fixamente para minha avó. Mal percebi quando o velho iniciou sua prece. Olhava para minha avó e lembranças saltavam aos meus olhos. Infinitas lembranças que pareciam tristemente resumidas em um único flash em minha memória. Tudo se misturava na saudade que sentia. Lembro de tê-lo ouvido repetir as coisas que a gente me dizia, alguns minutos antes, com a diferença que citava algumas passagens bíblicas. Argumento de autoridade, sabe como é.

Mas foi o que veio depois o que realmente me assustou. Algumas das velhinhas de “alto escalão”, quero dizer, as velhas bem velhas mesmo, tias de minha avó, pediram permissão ao Padre para cantar algum tipo de cântico religioso. O velho consentiu e tão logo proferiu suas últimas palavras, as duas começaram. Foi assustador. Suas palavras, suas caras e principalmente o que se via ao fundo deu seus olhos. Era pavor que lá havia. Pavor puro. Crença cega. Rezavam em nome próprio, pedindo, em nome de minha avó, o que, em breve, queriam ter para sim. Um ladinho ao lado de Deus.

Um comentário:

bernardo.vianna disse...

q susto... ao ler o começo do texto achei q vc ia escrever algo rodrigueano sobre o velória da sua própria avó!