sábado, 10 de novembro de 2007

Blade Runner e pós-modernismo


Se analisarmos o filme “Caçador de Andróides” (Ridley Scott, 1982, Blade Runner) à luz dos textos de Nelson Brissac Peixoto, “O futuro do passado” e “O olhar do estrangeiro”, parece ser possível inseri-lo não só na história da ficção científica, mas também no próprio conceito de pós-modernidade . Brissac, ao mapear a ficção científica, encontra dois momentos distintos e diferentes, porém ambos com grande importância para o gênero: a década de 50 e a de 80.
Durante os anos 50, o futuro sonhado é repleto de tecnologia e os filmes são uma celebração do moderno. Trinta anos depois, eram mais comuns os remakes de filmes antigos do que novos sonhos futurísticos. Assim passou-se a sonhar com um futuro que já se sabia ultrapassado e improvável, mas que tinha sido possível na imaginação de gerações passadas. A explicação de Brissac para tal ocorrência é “o paradoxo de uma época sem futuro fazendo ficção científica”. A dificuldade pós-moderna de sonhar um futuro capaz de atingir a utopia através da ciência é devida, em grande parte, aos desastres causados pelas duas Guerras Mundiais. O medo de que a ciência se volte contra o ser humano e aniquile-o impede os sonhos de um futuro perfeito e abre espaço para pesadelos futurísticos cada vez mais sombrios e complexos. O fôlego do gênero parecia enfraquecido.
Entretanto, ainda era possível revitalizar o gênero e foi isso que fez Scott com Blade Runner. Ao invés de buscar algo totalmente novo, Scott preferiu formulas simples e clichês. Com muitas seqüências e cenas que parecem tiradas de filmes policiais, o diretor consegue trazer fôlego e tensão para o gênero de ficção científica. Porém o que mais diferencia este filme dos feitos dos anos 50, é que “Caçador de Andróides” não é focado na tecnologia, mas sim no lado humano e nas conseqüências sentimentais da invenção de novas máquinas e técnicas.
A Los Angeles futurística apresentada no filme é uma cidade totalmente multiétinica; sua arquitetura é uma colcha de retalhos, composta por prédios de todas as épocas e estilos. Como se fosse pelo efeito visual de estar movendo-se em alta velocidade, a paisagem parece achatada, fazendo com que toda cidade inteira pareça um cenário bidimensional. As cores são escuras, como se a noite fosse constante, e fazem lembrar a vanguarda expressionista. A miséria presente em cada esquina desta cidade confirma uma visão decadente do futuro, onde a tecnologia é incapaz de dar fim aos problemas sociais e destrói a natureza.

Clones sentimentais

O filme aborda, em 1982, um tema que atualmente costuma ocupar páginas de jornal: a clonagem. Os personagens chamados de ‘replicantes’, são uma espécie de clone, com tempo de vida muito menor do que humanos normais, mas capacidades físicas e mentais sobre-humanas. Estes clones são perfeitos estrangeiros, pois, como um anjo que resolve tornar-se humano, não viveram nada. É por isso que o líder dos ‘replicantes’, antes de morrer, revela ao seu perseguidor que viu coisas inimagináveis para o ser humano. Afinal, em tempos em que a repetição de imagens consegue destruir os sentidos delas mesmas e os signos ficam sem contexto, só quem não viveu poderia olhar o mundo com inocência.
Quando a mocinha do filme descobre não ser humana, mas uma ‘replicante’, percebe que suas memórias não eram suas, tinham sido implantadas dentro da mente no momento de sua criação. Tudo de que se lembrava tinha sido vivido por outra pessoa. Tal chocante descoberta anulava todo o passado e, por conseqüência, também o presente da personagem. A identidade dela era produto da subjetivação de uma outra pessoa e essa revelação parecia levar a um sentimento de inadequação. Entretanto, apesar de não ter passado ou mesmo uma identidade, era possível amar e a partir deste momento ela se reinventa. Para representar tal mudança somente foram necessários que os cabelos dela, até então presos, ficassem soltos.
Sobre o caçador de andróides Deckard ergue-se uma dúvida: seria também ele um ‘replicante’? Entretanto, por mais que tal especulação torne o filme interessante e misterioso, a resposta para tal pergunta não é dada e nem é necessária para se entender o filme. Isto por que deixar pistas falsas para o espectador é apenas mais um dos muitos clichês de filmes Noir utilizados nesta produção. O auge dessa dúvida não é representado por diálogos e sim pela a imagem de um unicórnio, que aparece nos sonhos do caçador, mas também é produzida em formato de origami pelo policial Gaff e deixada no chão para servir de aviso. O unicórnio é um animal inventado pelo ser humano, não existe na natureza, assim como o clone ou o ‘replicante’.

Para Sevcenko, o Angelus Novus, pintado por Paul Klee e analisado por Walter Benjamin, representa o enigmático espírito da pós-modernidade. Os ‘replicantes’ guardam uma semelhança com este anjo. São personagens pós-modernos, pois apesar de olharem tudo com novos olhos sentem-se eternamente oprimidos e preocupados com a morte. A solução encontrada no filme é viver intensamente, até o último instante, e preocupar-se menos com a morte.

Bases e origens

Um filme onde alguns detalhes, ou algumas imagens, podem representar a identidade dos personagens é um que dá bastante importância à imagem. Assim, a sensação de já ter visto certas imagens do filme não deve ser entendida como coincidência e sim como uma indicação. Pois é na imagem de um prédio futurístico, igual ao usado em outro filme, que se realiza a homenagem de Scott a Fritz Lang e seu filme imortal, “Metrôpolis” (1927).
As semelhanças entre os dois filmes, porém, não param aí. Metrôpolis é a base de “Caçador de Andróides” por que mostra o sonho de criar uma máquina à semelhança dos seres humanos. São futuros onde impera a tecnologia e a ciência é capaz de criar a vida humana, mas não é capaz de dar conta das pessoas e do social. Enquanto Metrôpolis opõe em dois momentos ordem e caos, Blade Runner apresenta caos desde o princípio.
A origem da discussão em torno da vida artificialmente criada pelo homem começou com o monstro Frankstein, no livro escrito por Mery Sheley no início do século XIX. O final desta discussão nem os cientistas que conseguiram clonar a ovelha Dolly em 1996 podem prever. Afinal, apesar de ter vivido quase sete anos e até ter tido dois filhotes, Dolly, o primeiro clone da história, foi abatido para não ter uma morte dolorosa devido ao envelhecimento precoce. O filme Blade Runner apresenta o envelhecimento precoce não como um defeito, mas uma solução para o inevitável surgimento de emoções e sentimentos nos clones programados para servir como escravos, mas também apresenta a liberdade de uma ‘replicante’ sem “prazo de validade”.

Um comentário:

Anônimo disse...

caramba! gostei muitíssimo deste texto taó esclarecedor, eu que ví 2 vezes o filme, vou reve-lo apartir desta leitura, parabens.
Magda Delecave